A HISTÓRIA
Era uma vez um
bacalhau que nasceu nos bancos gelados da Terra Nova, assim baptizada
quando conhecida há quinhentos anos e cujo nome ainda se mantém, certamente por
oposição ao nosso Velho Mundo, velho de milénios, velho de tiques e manias de
aristocrata decadente que, qual Príncipe de Salinas (1), faz de conta que algo muda para que tudo continue na
mesma…
O bacalhau da nossa história era dessa Terra, em que reinava a Rainha das Neves (2), lá onde o gelo se apodera dos corpos e, devagar e insidiosamente, os vai transformando em cristais que se confundem com a paisagem branca e gelada.
O bacalhau teve,
contudo, a sorte de viver nas águas amenas dum mar muito salgado – porque no
seu leito profundo havia uma máquina abandonada que, desde tempos imemoriais
continuava a fabricar sal (3)- e temperado por águas quentes vindas
do Golfo, tendo tido a boa fortuna de viver feliz, brincalhão e despreocupado com os pais, irmãos
e primos, incluindo as visitas de primos doutras paragens longínquas, mais a oriente mas
igualmente setentrionais.
É que as várias
famílias de bacalhaus estavam organizadas por clãs, de acordo com as terras de onde
eram originárias, terras estas que deram o nome a cada clã.
Assim, as famílias da
Terra Nova integravam o clã dos BacNova enquanto que as do Mar do Norte
pertenciam aos BacNorge ou aos BacIce, consoante vivessem junto da costa
norueguesa ou da islandesa.
Em cada Solstício de Verão, os membros mais velhos dos
clãs e alguns dos seus descendentes reuniam-se para uma alegre confraternização, que tinha lugar alternada e sucessivamente, em cada um dos
três locais de origem e que durava uma semana.
Assim, cada três anos, os primos BacNorge e BacIce vinham às festas dos BacNova e estes deslocavam-se dois anos seguidos às águas dos BacIce e dos BacNorge. Em cada festa e em cada regresso dos BacNova havia sempre histórias e relatos
fantásticos de aventuras, experiências, terras, cores, mares.
O nosso bacalhau não perdia pitada
dos festejos e das conversas dos mais velhos, ficando horas escondido à escuta
das histórias e descrições desses mares longínquos, dos perigos das viagens,
que, para além das forças da natureza, incluíam ainda os potentes barcos de
pesca de bacalhau, por norma hasteando o pavilhão das quinas.
Enquanto flutuava nas
águas do Labrador, fechava os olhos e sonhava acordado com as paisagens das
terras de fogo da Islândia e dos fiordes noruegueses.
Mas havia outras histórias, de BacNovas mais destemidos e atrevidos que se haviam aventurado para os mares do Sul e que contavam como eram belos o azul protector do céu (4) e o vermelho cor de fogo do Sol que aquecia as terras e gentes que ali viviam, as povoações picarescas povoadas de gentes trigueiras e muito faladoras e cujas costas se encontravam adornadas por belas casas de madeira, pintadas com coloridas riscas verticais, e eram estes testemunhos que mais o faziam vibrar.
Talvez que este
entusiasmo se devesse ao facto de tal terra ter em comum com a sua o apelido
Nova, sendo Costa o seu nome próprio, mas nunca o poderemos saber.
O que sabemos é que bacalhau
tentava imaginar como seriam um céu azul e um sol em fogo, o que eram
vulcões que cuspiam esse mesmo fogo, mas acabava sempre tristemente por
concluir que enquanto não chegasse o dia em que ele próprio integrasse uma
dessas expedições nunca poderia imaginar como eram as terras, as gentes e as
cores daqueles lugares, para ele repletas do exotismo e da extravagância que,
invariavelmente, andam de mãos dadas com o novo e o desconhecido.
Cumpriu-se o destino e
o bacalhau atingiu a idade que lhe outorgou o necessário passaporte para viajar
e assistir a uma festa de clãs, que nesse ano se realizou nos mares dos BacIce.
Ele, que estava
habituado ao doce sossego das suas águas natais, quase interiores, apanhou valentes sustos pelo caminho, teve que
nadar muito e contra correntes poderosas, tendo chegado ao destino cansado e debilitado,
mas todas as agruras da viagem foram compensadas pelo cenário magnífico em que
viviam os BacIce – no qual ele reconheceu em cada monte, em cada alto, em cada vulcão, as
descrições há muito repetidas pelos primos BacIce e que, de tanto ouvidas,
havia memorizado como se uma reza se tratasse, de tal forma que ao pousar os
olhos naquelas terras – novas para ele – teve uma imediata sensação de
pertença, como se elas também fossem suas de toda a vida.
Participou em todas as
festas, cantorias e conversas, ouvindo mais do que falando, sempre de olhos
muito abertos, gozando tudo com um deleite inigualável e com uma tal intensidade
que tudo o marcou indelevelmente, qual ferro em brasa.
Regressou macambúzio,
perdido nas emoções vividas naqueles dias para sempre inesquecíveis e na
tristeza que lhe causava a viagem de retorno, e tão absorto estava que nem se
apercebeu de que uma pequena corrente o fez afastar do cardume dos BacNova, desviando-o
do seu caminho e forçando-o a rumar a Sul, facto de que apenas deu conta quando
sentiu as águas mais cálidas e se apercebeu de que o céu se tornara mais luminoso.
Tomou, então, a
decisão inabalável de seguir para sul; já tinha visto os vulcões, mas como estes não haviam cuspido fogo, continuava sem saber o que era o fogo e a sua cor, e conhecido outras paisagens e cores, mas tinha que saber o
que eram e como eram um céu azul vibrante e um sol da cor do fogo, tão luminoso
que dourava tudo e todos que fossem atingidos pelos seus potentes raios.
Por vários dias vagou,
sozinho e ansioso, com seu pequeno coração apertado pelo muito medo do desconhecido
e do que lhe poderia suceder, mas com a consciência de que, acontecesse o que
acontecesse, ele acabaria mais conhecedor, sábio e crescido do que quando saíra
do seu pequeno mundo, havia apenas escassos dias.
Chegou, enfim, ao seu
destino, àquelas terras de que tanto ouvira falar aos primos atrevidos, as de
apelido Nova, repletas de cores vibrantes, onde o céu era de um azul tão
intenso que quase lhe cegou os olhos e o sol de um vermelho tão dramático que
lhe cortou a respiração.
O contraste com a
monotonia esquálida da imensidão branca da sua terra nova foi tão grande que o
nosso bacalhau sentiu uma enorme comoção, tão grande, poderosa e arrebatadora
que, aliada ao esforço da viagem, lhe sugou as poucas forças que ainda lhe
restavam.
O azul do céu, o
vermelho do sol, os verdes e castanhos da vegetação, as listas coloridas das
casas de madeira foram as últimas cores que o bacalhau viu antes de fechar os
olhos para sempre.
Nesses últimos
instantes ele também reviu, com clareza e nitidez, toda a sua vida, desde as
brincadeiras de criança, aos primeiros namoricos, os ralhetes dos pais pelas
pequenas asneirolas sem importância que cometera, o fascínio das histórias
ouvidas aos primos e amigos aventureiros que se haviam escapulido para estes
mesmo mares do sul, a sua ânsia de querer ver este mundo luminoso e colorido, que
agora o envolvia e em cujos braços ele se entregava feliz, feliz por ter saído
da monocromia da sua vida anterior e feliz por ter podido ver e conhecer –
ainda que só por breves momentos - um outro Mundo que, para ele, era um Mundo
Novo, colorido e vibrante, pleno de gritaria e agitação, por contraste com as
brincadeiras inocentes e silenciosas nas águas da Terra Nova.
E, sem saber porquê,
acudiu-lhe ao pensamento uma frase ouvida em tempos a um primo muito viajado e
culto e cujo entendimento só agora lograra obter: “Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu.”
(5)
(2) A Rainha das Neves
(3) Porque é salgado o mar
(4) O Céu que nos protege
(5) Mar português
(5) Mar português
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A MORAL
Esta é uma história à
moda antiga, sem correcção política ou outra, com piscadelas de olho aos Contos
da minha infância que me fizeram sair do meu mundo pequeno e viajar à
desfilada, a cavalo das linhas de Andersen Grimm, Perrault e de muitos outros
escritores que fazem parte do meu ADN.
De todos os sentidos
que poderia eleger – e não consigo conceber a vida sem nenhum dos seis (sim,
porque acredito no sexto sentido e sei que o tenho…) – esta história exalta a
visão, em sentido real e metafórico, a visão que nos permite ver as coisas
belas e feias da vida e assim fazer a distinção entre elas, a visão que nos
permite ler, aprender, enriquecer-nos e, por consequência, crescer, a visão que
nos leva a ousar sair dos caminhos muito percorridos dos nossos pequenos mundos e inventar o nosso próprio trilho, a visão de tentar ultrapassar os
limites mas também a visão de saber que há limites que têm que ser respeitados.
Sem a visão, eu não
teria lido todos os livros que li nem leria aqueles que ainda tenho para ler,
não poderia ter visto todos os quadros e filmes que vi nem me poderia ter
emocionado com muitos deles, não conseguiria rever os momentos da minha vida
que vejo em câmara lenta e sempre sem som quando quero recriar o passado que já
foi e não voltará.
E, sem ela, eu não
poderia nunca ter escrito esta história…
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A RECEITA
Os ingredientes
Bacalhau em lombos (um por pessoa)
Meia couve portuguesa
Uma mão cheia de cogumelos porcini, marron, Portobello (ou outros á escolha, só os porcini são obrigatórios)
Uma mão cheia de castanhas congeladas
Batata doce (uma por pessoa)
Bacalhau em lombos (um por pessoa)
Meia couve portuguesa
Uma mão cheia de cogumelos porcini, marron, Portobello (ou outros á escolha, só os porcini são obrigatórios)
Uma mão cheia de castanhas congeladas
Batata doce (uma por pessoa)
1/2 kg de abóbora hokado ou butternut
Azeite, sal, tomilho e manjericão, salsa, uns dentes de alho.
Azeite, sal, tomilho e manjericão, salsa, uns dentes de alho.
A preparação
Cozinhei esta refeição da seguinte forma: enquanto amolecia uma mão cheia de cogumelos porcini em água morna e azeite, o bacalhau (previamente demolhado) foi cozer em lume brando, o suficiente para apenas agitar a água do tacho.
Cozinhei esta refeição da seguinte forma: enquanto amolecia uma mão cheia de cogumelos porcini em água morna e azeite, o bacalhau (previamente demolhado) foi cozer em lume brando, o suficiente para apenas agitar a água do tacho.
Escorri então o
bacalhau já cozido, que reservei até que ficasse frio.
Arranjada meia couve
portuguesa (que no meu Porto natal se apelida de penca), foi esta afogada em água fervente com pitada de sal, até ficar
tenramente cozida, momento em que se escorreu, picou finamente e se levou a
lume brando, a alourar num fio de azeite, com pitada de sal e louro.
Enquanto a couve
frigia, dediquei-me a lavar vigorosamente batatas doce com uma escova própria
para o efeito, fatiando-as de seguida em rodelas grossas, que dispus num
tabuleiro de forno, polvilhadas com flor de sal e salsa picada.
Cortei a abóbora em pequenos cubos, coloquei-a num pirex de ir ao forno e temperei-a com azeite, tomilho e manjericão, sal e uns borrifos de água.
Esfriado o bacalhau cozido, abri-o delicadamente ao meio, no sentido longitudinal, e recheei-o com um pouco de couve estufada e uns cogumelos porcini previamente amolecidos; cobri cada posta e atei com um baraço (nome de atilho ou fio no Porto). E o bacalhau passou à reserva.
Esfriado o bacalhau cozido, abri-o delicadamente ao meio, no sentido longitudinal, e recheei-o com um pouco de couve estufada e uns cogumelos porcini previamente amolecidos; cobri cada posta e atei com um baraço (nome de atilho ou fio no Porto). E o bacalhau passou à reserva.
Tempo de levar ao lume
uma mão
cheia de cogumelos marron e Portobello bem lavados e fatiados e uns porcini
demolhados, temperados apenas com sal; cozeram rápido, pese as diferenças de
hierarquia que os separavam na tabela dos fungos… É, ao lume e a ferver são
como os gatos à noite – todos pardos e iguais…
Já tinha cozido uma
mão cheia de castanhas congeladas (demoram 10 minutos a partir do
momento que a água começa a ferver) que, escorridas, foram para o tacho dos
cogumelos.
Triturei tudo muito
cuidadosamente e, no fim, ainda passei o preparado pelo liquidificador até
obter uma bela emulsão. Provei e rectifiquei o sal. E também o VELOUTÉ DE COGUMELOS E CASTANHAS passou
à reserva.
Chegou a hora de
tirar o bacalhau da reserva, que se colocou num pirex de ir ao forno, bem
regado com azeite.
Bacalhau, batatas e abóbora
seguiram para forno pré-aquecido a 210ºC e assaram cerca de meia hora, a 180ºC (convém ir regando o bacalhau com o azeite para que não seque demasiado).
Imediatamente antes de
servir o velouté de cogumelos e castanhas incorporei umas colheradas de azeite com
uns porcini retirados do estufado de cogumelos destinado ao Velouté e polvilhei com pimenta preta
moída na altura.
VELOUTÉ DE COGUMELOS E CASTANHAS |
O bacalhau foi servido
à razão de um lombo por prato (era dia de festa, mas a dose não deixou de ser
exagerada), acompanhado de uma batata doce às rodelas e de um pudim
feito com a abóbora confitada no forno.
BACALHAU RECHEADO COM COUVE, BATATA DOCE ASSADA E PUDIM DE ABÓBORA CONFITADA |
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EPÍLOGO
Passei em revista o
enunciado do desafio - uma receita e um sentido.
Será que ainda elegeria
a visão?
É que numa refeição
quase todos os sentidos estão presentes: primeiro, o mais óbvio é o paladar,
que dispensa apresentações, logo seguida do olfacto (nem sempre pelas melhores
razões, é certo…), sem esquecer que, como os olhos também comem, a visão está
sempre presente, para além do tacto que tantas sensações nos provoca à medida
que vamos manuseando os alimentos; a audição também conta, pois por ela
conseguimos muitas vezes perceber se a fervura está no ponto ou carece de algum
estímulo mais de calor.
Pensei em eleger o
paladar - os ingredientes utilizados conseguiram sair dum caos bruto e
primitivo e transformar-se numa refeição harmoniosa, repleta de sabores
subtilmente delicados e refinados. Já repararam como, para melhor degustar um
determinado sabor muito apelativo, fechamos os olhos? É, certamente, para não
dispersar a atenção do paladar para a visão.
Mas foi este último o sentido que finalmente prevaleceu: a visão duma natureza morta com pincelada quase abstracta, tingida pela paleta das cores de Outono que enchiam a mesa – o dourado do bacalhau assado, o ocre da batata doce, o castanho terra do velouté, o verde musgoso da couve estufada, o laranja da abóbora confitada, todos envolvidos pelo tinto de um poderoso vinho do Douro - construída a partir da imensidão branca e gelada da Terra Nova, um dos habitats do bacalhau a que nos habituamos a chamar português.
NATUREZA MORTA EM TONS DE OUTONO E MODO QUASE ABSTRACTO |
E assim acaba esta
história de sentidos, sabores e saberes com que participo no Passatempo 5Sentidos com a Alecrim aos Molhos, do blogue [limited edition].
Nota: as receitas foram inspiradas, a do bacalhau, no
Livro Cozinha da Beira Litoral (da Assírio & Alvim) e a do velouté numa
sopa comida num restaurante de referência no Porto.
As ilustrações (excepto dos cozinhados) fora retiradas da INTERNET e trabalhadas até obter o efeito desejado.
As ilustrações (excepto dos cozinhados) fora retiradas da INTERNET e trabalhadas até obter o efeito desejado.
que vida fascinante teve esse bacalhau... e depois acabou no prato muito bem acompanhado. excelente participação, como sempre! beijinhos e boa sorte
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