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domingo, 19 de junho de 2011

Um diletante na cozinha


Julian Barnes é um excelente autor inglês contemporâneo. O seu livro Amor & Cia (Talking it over no original) é um tratado sobre comunicação - resumindo, é uma história (comum) de amizade (masculina) que acaba quando o amor pela mesma mulher opõe os até então melhor amigos, cuja originalidade consiste em ser contada pelas três personagens principais (marido, melhor amigo, mulher) e algumas das secundárias. Cada personagem tem uma visão própria e, naturalmente, diferente do mesmo facto. A continuação - Love, etc - não é tão poderosa talvez porque já não exista o efeito surpresa do primeiro romance.
Mas como o tema deste blog é a culinária, não posso deixar de recomendar a leitura do livro A pedant in the kitchen - que traduzi livremente por "Um diletante (e não pedante) na cozinha".
As receitas são absolutamente laterais à economia do livro (aliás, algumas delas fazem-me "urticária") mas há frases e descrições de antologia - por exemplo a resposta "demasiados mas nunca os necessários" (too many and not enough) à pergunta quantos livros de culinária é que vc. tem.
Outra questão descrita com mestria é a paralisia filosófica causada no cozinheiro pela dúvida sobre o tamanho das mãos do autor do livro sempre que, numa receita, se refere como quantidade “uma mão cheia de … ” (qualquer coisa serve de exemplo).
A não perder o capítulo “The bottom drawer” sobre as pilhas de artefactos culinários inúteis que se vão acumulando ao longo da vida e que acabam invariavelmente arquivados na “gaveta dos fundos”, na despensa (prateleira de cima, bem escondidos atrás de tudo) ou na famosa arrecadação que serve para guardar lixo (e acho que o livro foi escrito na era pré-bimbi…).
Engraçadíssimo o capítulo dedicado às receitas que teimam em não resultar apesar de serem seguidas à risca apenas para se vir a descobrir, pela voz do mesmíssimo autor das receitas que “Mas eu já não faço assim!!! Não resultava, sabe em vez de … faço ….”. Pensamento (justificadíssimo) de Julian: “E não podia ter partilhado com os leitores, não?!” Não, Julian, parece que a relação com os leitores é mesmo só cobrar os royalties…
Para além do lado caricatural, a mensagem fulcral deste livro é a de que a culinária é uma arte que se pratica para os outros: para alimentar a nossa família, para seduzir amor da nossa vida, para sedimentar as nossas melhores amizades, para impressionar os outros (esta parte deixo para os Ferráns Adriás desta vida…).
A cozinha é estruturante na vida das famílias e das sociedades.
É na cozinha que se vão construindo cumplicidades entre mães e filhos, passando conhecimentos de vida, e, sobretudo, educando com o exemplo – o exemplo da dedicação e do sacrifício pelos outros, da poupança e da economia, de fazer chegar ao fim do mês um orçamento apertado, a doçura de um cozinhado feito com amor. Deixo aqui o meu reconhecimento às Mães que nos ensinaram e ajudaram a ser quem somos. Aos filhos sugiro que apreciem e felicitem sempre os cozinhados das vossas Mães – ainda que possam ter sal a mais ou a menos – porque foram feitos para vos alimentar e, reconheço, nem sempre com vontade de os fazer mas sempre, sempre com um espírito de missão que só as Mães sabem ter.
Voltando a Julian Barnes, ele dedicou este livro a “She whom he cooks for”. Infelizmente, “She” já cá não está e imagino que Julian tenha perdido muita da sua motivação.

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