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sábado, 22 de outubro de 2011

E AGORA ALGO COMPLETAMENTE DIFERENTE (2)

A FORMIGUINHA

Tendo a cigarra em cantigas
Folgado todo o Verão,
Achou-se em penúria extrema
Na tormentosa estação.

Não lhe restando migalha
Que trincasse, a tagarela
Foi valer-se da formiga,
Que morava perto dela.

Rogou-lhe que lhe emprestasse,
Pois tinha riqueza e brio,
Algum grão com que manter-se
Té voltar o aceso Estio.

"Amiga", diz a cigarra,
"Prometo, à fé de animal,
Pagar-vos antes de Agosto
Os juros e o principal."

A formiga nunca empresta,
Nunca dá, por isso junta.
"No Verão em que lidavas?"
À pedinte ela pergunta.

Responde a outra: "Eu cantava
Noite e dia, a toda a hoRa."
"Oh, bravo!", torna a formiga.
"Cantavas? Pois dança agora!"


(Fábula de La Fontaine, em tradução de Bocage, publicada em FÁBULAS - La Fontaine, Temas e Debates, 2ª ed. 1999)

Lembro-me muito bem desta fábula e da moral que dela se retirava.
Em criança era capaz de ficar horas a olhar, fascinada, para as movimentações das formigas, plenas de organização e precisão militares.
Já adulta, senhora de minha casa, dei por mim a amaldiçoar La Fontaine quando as boas das formiguinhas - trabalhadoras, poupadas, sérias - me invadiam despensa, cozinha e tudo o que fosse susceptível de ter migalhinhas.
Questionei seriamente La Fontaine porque as cigarras, essas, cantavam mas não me invadiam a casa.
Anos volvidos, tomei contacto com as cigarras.
As cigarras não cantam - guincham, gritam, todo o santo dia, escondidas na vegetação, durante a torreira do sol, e só se calam com o tombar da escuridão.
Já imaginaram seres mais estúpidos e inúteis?! Quando deviam descansar, esfalfam-se a fazer nada e quando deviam estar a trabalhar tombam sucumbem ao cansaço (e, pelos vistos, penúria!) da sua fútil actividade.
E aí percebi a moral da história (a do La Fontaine e das outras histórias mais pós-modernas e muito próximas de nós no tempo e no espaço...).

Serve esta introdução para falar duma actividade outonal de que me recordo desde que tenho memória: as compotas.
Era a marmelada, a geleia, o doce de abóbora, e todas as variações possíveis com as frutas da época: maçãs, peras, pêssegos.
A marmelada era toda uma aventura que culminava com as taças nos parapeitos das varandas e, para meu pavor, as temíveis abelhas e vespas a rondá-las, até estarem bem secas e prontas para serem tapadas com papel vegetal embebido em álcool ou aguardente.

Desde há muitos anos que não dispenso estas actividades, apesar de quase não comer o produto final. Mas adoro sentir os cheiros e ver as cores das taças e dos frascos cheios de geleia. E sei que os meus amigos também gostam muito do recheio...
Acabei agora mesmo a segunda (e última, espero) sessão de marmelada + geleia, graças a mais duas generosas doações de marmelos.



MARMELADA
Depois de muitas variações ao longo dos anos, a minha receita preferida de marmelada é a seguinte, baseada na receita de marmelada branca, do livro "O mestre cozinheiro".

Ingredientes
Marmelos grandes
Açúcar (na quantidade de 1kg para 1kg de polme de marmelo cozido e triturado - na receita original a quantidade é de 1,2kg de açúcar para 1kg de polme)
Água (em quantidade igual ao dobro do volume de açúcar, o que dá aproximadamente 2litros por cada quilo).

Preparação
Lavar muito bem os marmelos. Cortá-los em quartos, mergulhá-los em água com sal. Descascá-los e retirar-lhes o cascabulho, mergulhando-os de novo em água com sal.
Reservar as cascas e cascabulhos.

Colocar os quartos de marmelo num tacho largo com uma pitada de sal, borrifar com água, tapar e deixar cozer.
Como já referido neste blogue, o marmelo é muito adstringente e não larga água, por isso é preciso seguir atentamente a cozedura e ir molhando com água suficiente para não o deixar queimar.
Quando o marmelo estiver bem tenro, desligar o lume e triturar até ficar um polme cremoso e sem grumos.
Reservar.

Levar o açúcar com a água ao lume até formar ponto de rebuçado.

Uma vez atingido o ponto de rebuçado, mistura-se o polme no açúcar (aconselho a misturar o açúcar no polme, para este não cozer com o calor) e bate-se bem até a mistura esfriar, altura em que se volta a levar tudo ao lume, mexendo sempre, até formar novamente ponto (que se atinge quando a marmelada começa a formar bolhas e a saltar repuxos).
Avisos
(1) O ponto de rebuçado é parecido com o fim do arco-íris, parece que existe mas ainda ninguém o encontrou... e, além disso, demora, demora, demora a chegar quase lá!
A minha pessoa desesperou, arrancou cabelos, pespegou uma humidade pegajosa à volta do fogão, até capitular perante uma massa de açúcar, vagamente parecida com um sucedâneo de rebuçado (chinês, pela certa...) que, ainda por cima, terá ficado esquecido num bolso dos calções durante todo um dia de praia.

(2) Aviso muito sério: o açúcar quente pode provocar queimaduras graves e todo este processo deve ser efectuado com o máximo cuidado, sobretudo a execução final.

Verter a marmelada para taças (ainda passei a massa por um coador de rede para retirar quaisquer possíveis grumos), agitar suavemente as taças no fim para uniformizar, deixar secar uns dias até a marmelada ter aderido completamente à taça e tapar então com papel vegetal embebido de ambos os lados em álcol ou aguardente. estender o papel com as pontas dos dedos até ter evaporado o líquido e que tenham desaparecido todas as bolhas de ar entre a marmelada e o papel (dá trabalho para caramba! só me pergunto porque é que em criança a-d-o-r-a-v-a fazê-lo...)



GELEIA
Preparação

Colocar num tacho as cascas e cascabulhos de marmelo com o dobro de água e deixar ferver até o líquido reduzir aproximadamente para metade.
Coar com uma rede e gaze. Medir o líquido - por cada litro juntar entre 800gr a 1kg de açúcar. Levar ao lume até formar ponto de estrada (deita-se uma colher de líquido num prato, deixa-se arrefecer e passa-se com um dedo no meio, se não voltar a unir formou estrada e eis o dito ponto). Costumo colocar no tacho o zingarelho que acompanha os fervedores e que servirá para não deixar o leite vir por fora (e que, como estará bom de ver, não me serve de nada senão para a geleia, sendo que, em geral, nesta era de leites do dia e de longa duração que ninguém ferve, deve ser um artefacto pré-jurássico e em vias de extinção).
Quando pronta, guarda-se em frascos bem lavados e, preferencialmente, quentes, enchendo até cima, tapando imediatamente e virando-os ao contrário até arrefecerem.

Esta formiguinha vai agora descansar um merecido e reparador soninho de beleza para amanhã continuar nas suas múltiplas lides e afazeres.

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