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segunda-feira, 9 de julho de 2012

CONVIDEI PARA JANTAR UMA POP STAR DO SÉC. XVIIII

Quando soube o repto lançado este mês pela Rainha que vive No reino da Prússia, a convite da Ana, a minha escolha foi imediata, intuitiva e óbvia: só podia ser ele, um compositor magistral, uma pop star avant la lettre.



Tomei algum tempo a preparar a recepção. Relembrei tudo o que dele tinha lido e ouvido para melhor o receber.

Chegou atrasado, tal como  eu havia antecipado. Quando abri a porta, os olhos da vizinha do lado saltavam das órbitas. Lancei-lhe  “Oh Ana, sabe, hoje é noite de Mistery Murder Dinner e desta vez passa-se no século XVIII…” O sorriso  amarelo desmentiu a bondade da explicação. Também não era para menos: o meu convidado envergava uma casaca de seda acetinada azul turquesa, uma cabeleira empoada, sapatos de salto e fivela, corsário bem justo que morria numas ligas que encimavam umas belas meias de seda, duas rosetas rosadas nas faces e um sinal “a la Marilyn” numa das rosetas. Olá!!! Belo falatório no bairro para o resto do mês…
Rapidamente chegámos ao entendimento em francês, idioma que o meu convidado dominava na perfeição, apesar dos arcaísmos, e que eu ainda vou dominando, apesar da cada vez maior omnipresença do inglês e do espanhol.

Coloquei no leitor de CD alguns discos de compositores contemporâneos - Rodrigo Leão, em todas as variações e edições , os GNR dos tempos da Pronúncia do Norte, Leonard Cohen - cujos versos quis ler -, Paul Simon, ershwin. Música que, tal como a dele, é cerebral, clássica, e, simultaneamente, apaixonada e inovadora. Mas também o fiz ouvir umas pirosadas descomplexadas dos anos 70 e 80. Mostrou interesse nos compositores, fez perguntas, percorreu os discos todos e parou no Sargent Pepper’s  que mirou e remirou, comentando que não se lembrava deles no seu tempo.  Elucidei-o que, apesar das casacas e dos cabelos dos cavalheiros retratados na capa do disco, já tinham passado mais de duzentos anos desde o "seu" tempo e tentei, como pude, explicar-lhe o que era uma gravação, um CD, e por aí parei.
Ensinei-o a colocar os CDs e a controlar o comando. À medida que foi ouvindo a sua obra, emudeceu, sorriu, gargalhou histericamente, emudeceu novamente e, por fim, chorou. Chorámos os dois. Chorámos a sua morte precoce, que nos privou de muitas outras grandes peças musicais, já idealizadas e que apenas aguardavam a oportunidade de passarem à pauta; chorámos a música sublime que compôs na sua curta existência, que nos faz acreditar no Céu, no Paraíso, no Olimpo, na Perfeição, no Bem, que nos transporta para uma outra dimensão e nos faz esquecer a mesquinhez do dia a dia.

Perguntou-me se tinha cravo. Estava com uma ideias para uma pequena composição que me queria dedicar. Expliquei-lhe que não – talvez em casa do Frederico Lourenço. “Chama-se uma caleche e vamos a casa desse Frederico”  atirou-me, mas como não sou das relações do Frederico, a ajuda não era grande.
Na falta do cravo, escutámos as suites para o mesmo, de Händel. E, numa vertigem DJ desconhecia para mim, passei os Nocturnos de Chopin divinamente interpretados por Maria João Pires e, por último, de Puccini, aquela  área dilacerante em que M. Buterfly nos leva, literalmente, às lágrimas


Cansado, questionou-me então sobre o que tinha acontecido nos últimos duzentos e vinte anos.
Reflecti e acabei por lhe responder que nada. Nada que não se tivesse passado em todos os séculos que haviam precedido aquele em que ele vivera, adequadamente registados na Tragédia Grega e, mais recentemente, pelo Bardo da Velha Albion – ganância, inveja, ira, orgulho, avareza, gula; guerras – muitas e devastadoras, que por várias vezes levaram a Europa ao abismo. Mas também coisas boas: liberdade de pensamento e de expressão; acesso à educação; ascensão social. Melhores condições de higiene e salubridade que permitiram o aumento da esperança de vida e evitar morte prematuras como a sua.

O seu olhar não se fixava em coisa nenhuma e, da janela do  apartamento, seguia, indiscreto, as raparigas mais vistosas que iam passando na rua, inquirindo-me se era normal o estado de semi-nudez em que se exibiam; expliquei-lhe que uma das mudanças tinha, precisamente, a ver com a alteração do estatuto da mulher – depois de, há quinhentos anos ter ganho alma, tinha ganho (mas apenas nos últimos sessenta anos e na Europa, não em Portugal...) o direito de votar, de trabalhar, de ser autónoma, de ter uma carreira, de optar por casar ou não casar, de ter ou não ter filhos.
Franziu o sobrolho. Expliquei-lhe o que eram eleições universais (difícil, muito difícil...),  “ter uma carreira” e também que as opções de casamento e filhos se deviam a um medicamento, descoberto por  acaso nos anos 50 para tratar a infertilidade, vulgarmente chamado "pílula", que veio alterar significativamente a forma de organização social do mundo ocidental. Referi-lhe, de seguida, o que eram cuidados de saúde primários, que faziam com que a mortalidade quer das mulheres quer infantil tivesse baixado para números quase sem expressão, o que permitia às pessoas ter apenas dois filhos sem receio de ficar sem nenhum. Dor que ele havia conhecido na casa paterna, pois dos sete filhos nascidos, seus pais apenas viram sobreviver dois - o meu convidado e uma sua irmã.

Pensativamente, retorquiu-me: “E dizia-me a minha amiga que nada havia mudado! Mudou muita coisa e mudou muito, e para muito melhor, ao que vejo.” Tive que lhe dar razão. Na cegueira de desvalorizar o que temos e que damos por adquirido - não o sendo, de maneira nenhuma - não nos apercebemos de que viver no século XXI num País Ocidental é um privilégio sem qualquer possibilidade de comparação com os séculos passados e com aquilo que ainda agora se passa noutras latitudes e longitudes que, por não terem tido um Renascimento, ainda não saíram das suas Idades Médias.
Passámos à especialidade austríaca que havia preparado especialmente em sua honra – Apfelstrudel, ao que li, originária de Salzbourg, terra que o viu nascer.  Acompanhada de um Porto Vintage de 1999.
Mal provou o bolo mas deliciou-se com o vintage.


Soltou-se-lhe a fala e iniciou um monólogo alucinante de confidências. Como foi ser menino prodígio, treinado, educado e formatado por seu pai, ele próprio músico, compor a primeira sinfonia aos seis anos, ser a coqueluche das principais cortes europeias de então, incluindo a francesa cuja rainha, sua compatriota, lhe sobreviveu dois anos, tendo morrido igualmente na flor da idade, vítima da doença mortal do ódio humano.  Como era sobreviver naquele tempo em que não havia subsídios estatais mas apenas mecenas a quem havia que agradar – e ele, bastas vezes, tornou-se mestre em desagradar-lhes… - respondendo a encomendas específicas que, de alguma forma, limitavam a liberdade criativa do autor. A sua relação de amor-ódio com Leopold, o pai. O amor incondicional pela mãe, cuja morte o arrasou…

Deixando-o a fazer as honras ao vintage, coloquei no DVD o filme de Milos Forman de 1984, “Amadeus”.
Nas duas horas seguintes o meu convidado não se mexeu. E, no fim, suspirando, apenas murmurou “Será esta a imagem que fica de mim? Um tonto infantil e malcriado, mau filho, gastador, boémio e bebedolas?...!”
Retorqui-lhe que, por causa daquele filme absolutamente magistral, muita gente o havia ficado a conhecer e que muita outra, como eu, já o conhecendo desde criança graças a uma biografia da Editora Civilização herdada dos irmãos mais velhos, ficou a amar profundamente a sua música, toda ela genial, fruto de uma inspiração que nos convoca para o Olimpo. E que, neste século e no nosso Mundo Ocidental – e também por força de um seu compatriota de nome próprio Sigmund -, compreendemos, mais do que nunca, que o génio tem, muitas vezes, que ser sopesado com liberdades, fugas e recurso a compensações que não se permitem às pessoas normais, cuja normalidade de vida deveria, aliás, dispensar tais necessidades.
O céu começava a tingir-se de laranja quando nos despedimos. Com a porta quase fechada voltei a abri-la ante uma batida imperativa. Disparou febrilmente: “Só não percebo porque me chamaram Amadeus, toda a gente sabe que me chamo Wolfgang, Wolfie para os íntimos”. Virou costas e saiu sem me deixar responder.

Enquanto o leitor de CD reproduzia os últimos acordes do Requiem inacabado, recordei que, etimologicamente, Amadeus é o que ama a Deus mas que, no caso do meu convidado seus pais terão escolhido tal nome (Theophillus, no original, ou seja, filho de Deus) como premonição de que seria o eleito de Deus. Terá sido esta a razão que levou Forman a optar pelo nome menos conhecido? Ou, mais prosaicamente, a opção deve-se à mais fácil dicção para o público anglo-saxónico? Não sei e também de nada serviria que soubesse pois o meu convidado desaparecera como que eclipsado pela aurora que se ia impondo.

Sem poder esquecer a pergunta, folhei, distraída, um catálogo de uma exposição da obra de um outro Amadeu, este nosso, de Manhufe,  em que aparecem apontamentos de um Amadeo italiano, contemporâneo do nosso,  ambos igualmente geniais, ainda que noutras Artes, e cujas mortes prematuras ceifaram futuros que, a ajuizar pela obra já feita, só podiam ser brilhantes.
Fui forçada a concluir que Amadeu, Amadeo, Gotlieb, Theophillus é, em qualquer língua, um génio eleito por Deus e para Ele precocemente chamado como contrapartida da sua genialidade... E que, intuindo esse destino, todos eles trabalharam febrilmente para cumprir a Missão a que haviam sido destinados antes que chegasse a hora do chamamento.

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A receita deste Convidei Para Jantar é austríaca. O Strudel, segundo li, será originário de Salzbourg, terra que viu nascer Mozart e foi tirada (há quase vinte anos...)  do Grande Livro de Cozinha Internacional, das Selecções do Reader’s Digest (cortesia da casa materna), sendo a terceira vez que é confeccionada por mim. Tem adaptações (entre parênteses aparece o ingrediente original) para a tornar mais equilibrada (do meu ponto de vista, claro). O meu convidado queixou-se da falta de açúcar...
Apfelstrudel
Massa
Ingredientes
225gr de farinha T65
½ colher de chá de sal
2 colheres de sopa de pasta de sésamo clara (1 chávena de óleo)
3 ou 4 colheres de sopa de limão
6 colheres de sopa de água morna
1 ovo
(25 gr de manteiga derretida)
Preparação
Misturar a farinha com o sal, fazer um buraco e colocar o ovo, o óleo e o sumo de limão, juntar a água pouco a pouco, trabalhando a massa até que esta se solte completamente das más e da taça de trabalho, colocando-a então numa superfície lisa polvilhada com farinha, trabalhando-a cerca de 10 minutos. Colocar então a massa numa tijela aquecida (colocar água a ferver enquanto trabalha a massa no recipiente que se vai utilizar depois) e deixar repousar 30 minutos.
Enquanto a massa repousa, preparar o
Recheio
Ingredientes
(1)4 maçãs reinetas descascadas às rodelas e demolhadas em água com sal
(2)75gr de passas
(3)50gr de nozes picadas
(4)2 colheres de sopa de geleia de arroz  (65gr de açúcar)
(5)½ colher de chá de canela em pó
(6)¼ de colher de chá de noz moscada
(7)50 gr de pão ralado
(8)raspa de um limão (a raspa é uma inovação de minha lavra)
½ colher de sopa de pasta de sésamo clara e um pouco de malte de cevada
(50gr de manteiga)
Preparação
Juntar os ingredientes (1) a (8), com uma pitada de sal.
Colocar a massa num pano polvilhado com farinha. Tende-la num rectângulo com 0,3cm de espessura e 50cm*30cm de área.
Pincelar com a ½ colher de pasta de sésamo, espalhar o recheio uniformemente deixando cerca de 2cm de cada um dos lados.
Enrolar com a ajuda do pano, colocar em cima de papela vegetal untado com óleo (de sésamo) num tabuleiro polvilhado de ir ao forno, pincelar o rolo com malte de cevada e levar ao forno pré-aquecido a 190ºC durante cerca de 40 minutos.
Deixar arrefecer.
Servir com iogurte biológico natural (originalmente, seriam natas batidas sem açúcar, mas o teor de gordura das natas é dez vezes superior ao do iogurte e, não sendo adepta de lácteos, tive que me render pois as natas de soja super-cremosas  desapareceram do mercado...).

 

2 comentários:

  1. Brilhante! Esmerado, colorido, inclusivo, critico, cativante e delicioso, sem açucar.

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  2. Olá,
    Que episódio fantástico! Adorei ler o teu texto e o teu convidado é, sem dúvida, uma mente brilhante!
    E o Apfelstruedel, não poderia ser mais apropriado!
    Obrigada pela participação!
    Beijinhos
    Sofia

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