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domingo, 7 de outubro de 2012

CONVIDEI PARA JANTAR...

um poeta e músico, que se lançou nos anos sessenta do século passado e que, com alguns baixos e sobretudo muitos altos, já vai na quinta década dedicada às canções. Talvez porque escreve e canta os e aos nossos sentimentos mais recônditos, consegue sempre chegar e tocar os ouvidos das gerações que se sucederam àquela que seria a sua geração natural - a dos baby-boomers de sessentas. Os seus concertos estão sempre cheios de plateias em que se cruzam avós, filhos e netos. Longevidade, sucesso e transversalidade geracional só igualados por Paul Simon e, talvez, Bob Dylon. 
 
 
Chegou cansado, cansadíssimo, após as quase quatro horas do concerto Old Ideas Worl Tour desta noite no Pavilhão do Atlântico, com o qual encerrou a tournée europeia iniciada em 15 de Agosto último, na Bélgica. A apoteose foi absoluta e a noite  esteve perfeita, sem suspeição de brisa quanto mais de vento, o que é raro no Verão lisboeta -  só faltou mesmo uma lua cheia em todo o seu esplendor para ser uma noite de pecado.

O fato clássico que nunca abandona – segundo o próprio, foi um hábito ganho pelo facto de ser filho de um alfaiate e de, em consequência, cedo se ter habituado ao conforto dos fatos de bom corte - realçava o charme discreto de "bon vivant" muito entradote, logo contraditado pelas patuscas botas de cow-boy americano que lhe adornavam os pés. Um conjunto pouco congruente para o ideal europeu de elegância mas que casa bem com os padrões no Novo Mundo. Este é o segundo canadiano com quem travo conhecimento este ano e as botas que usam são parecidas…
Aliás, a vizinha do lado, que com ele se havia cruzado no patamar, piscara-me um olho guloso, murmurando que o cavalheiro era muito charmoso…
 
Abandonou-se na chaise longue e fechou os olhos. Observando-o meticulosamente, reparei como parecia mais velho ao vivo (é sempre assim…), nas feições, carregadas pela idade, que denunciam a genética que o nome, só por si, já anuncia.

Quando se tem à frente um dos “cantautores” que nos acompanham há mais de trinta anos, cujas canções dizem tudo o que sentimos, traduzindo igualmente os ares dos tempos que as viram nascer sem que com isso percam a actualidade - antes pelo contrário - não há nada para dizer.
Só ouvir o homem do mundo, cosmopolita, que conhece e viu países, gentes, paisagens, que eu provavelmente nunca verei e teve experiências que eu nunca terei – passando muito bem, obrigada!, ao lado de algumas delas…
 
Conheço de cor a sua obra, a que regresso sempre que preciso de “voltar a casa”, de me reencontrar, começando pela incontornável Susanne, a que usa os símbolos do Exército de Salvação, a que nos leva para o rio onde se ouvem os barcos e onde ela nos oferece chá e laranjas que vieram da China e com ela queremos viajar porque ela nos tocou a alma, passando pela Marianne de quem nos despedimos, pelo Partisan que nos convoca Georges Moustaki, outro cantautor dos sessenta mas que ficou pelo caminho, por In my Secret Life, em que estamos sempre sós e o nosso coração é de gelo, apesar da multidão que nos rodeia, por Alexandra leaving de quem ainda não nos despedimos mas de quem já sentimos a falta porque a sabemos perdida, para  no Chelsea Hotel descobrirmos jovens lendários e famosos - quiçá alter egos do meu convidado - que se amam mas fogem uns dos outros, por Hey, That's no way of saying good-bye em que há beijos cálidos e apaixonados e manhãs de amor sem fim. Podia falar de muitas outras - The stranger song, Bird on the wire, Hallelujah, Dance me to the end of love, e o resto da noite não seria suficiente para as ouvir a todas e delas todas falar.
Não esqueço os anos de chumbo, pouco inovadores, provavelmente coincidentes com os piores da sua conturbada vida pessoal e as várias travessias no deserto que terá empreendido, os álbuns inenarráveis, confrangedores, sem um fio condutor (à excepção, talvez, do tema "The Guests" - tocado nesta tournée pela primeira vez em décadas).
Uma década que só não foi perdida porque, qual Fénix, renasceu em 1988 com "I’m your man". Perfeição superlativa. Em I’m your man canta-nos a canção do bandido que pensa que qualquer mulher quer ouvir - ele será tudo o que quisermos que ele seja: amante, amigo, pai, médico, por nós rastejará, roubará, desaparecerá, e aquela voz envolvente, cálida, já não imaculada mas ainda límpida, faz-nos querer ouvir tais promessas vãs, sabendo embora o quão vigaristas são...
Nesse álbum, aborda  os temas polémicos dos anos 80, cuja actualidade e intemporalidade são, hoje mais do que nunca, por demais evidentes:  “Everyboy knows”, que nos fala da nova peste, que então estava a dar os primeiros passos e cujas devastadoras consequências ainda não se adivinhavam, e que nos grita que os ricos ficam sempre ricos e os pobres sempre pobres, e “First we take Manahattan (then we take Berlin)", cujo título, por si só, é toda uma declaração de intenções, poderiam hoje ser os hinos das manifs do dia 15 de um qualquer mês de uma qualquer cidade da Europa nestes tempos de perigo conturbado e inquieto…
Quando ambos retomámos o contacto com a realidade, servi um delicado chá branco - também ele vindo da China - observando todo o protocolo associado: escaldar o bule, ferver a água, tirar-lhe a temperatura para apenas a verter no bule quando descesse para os 96ºC, esperar 4 minutos e retirar o cesto do chá. Falámos de ninharias e trivialidades – dos vários tipos de chá, dos de folha miúda, fortíssimos, dos de folha grande, mais fracos, da delicadeza dos chás resultantes das primeiras e segundas apanhas (first and second flushes), dos domínios em altitude que se traduzem na produção de chás pálidos de subtil sabor, dos aromatizados como o Earl Grey (provavelmente o mais famoso conde do mundo…). 
Ele contou-me então as experiências havidas e histórias caricatas das suas tournées; não são muitas as histórias porque as tournées são maratonas em que num dia se está numa cidade e dois dias depois noutra a 1000km de distância, e assim sucessivamente, sendo todo o tempo disponível guardado para recobrar forças. Mas nem por isso abandona a celebração do Sabath judeu que faz questão de preservar. Aflorei a sua badalada conversão ao budismo. O meu convidado sorriu com um esgar ligeiramente escarninho e, cortando delicadamente o assunto, retorquiu-me que o chá era efectivamente delicioso.
 
Percebi a mensagem – não iria haver revelações de estados de alma nem outras inconfidências: ele só diz o que quer e quer dizer pouco. Retive, pois, as perguntas que me queimavam os lábios - como, por exemplo, saber até que ponto conhecia a obra de LLorca para baptizar a filha com o apelido do poeta espanhol - e passei directamente ao bolo de maçã, estreia absoluta de uma receita da casa materna que adaptei para a macrobiótica e que segue no final da crónica.
Gostou do bolo. Eu também. A adaptação à macrobiótica correu bem. Imaginei-me, qual Vovó Donalda, rancheira  (muuuuito moderna e giraça) cozinhando bolos e tartes de maçãs, colhidas das árvores de uma qualquer quinta do Novo Mundo, enquanto escuto as músicas a que volto sempre - Cohen, Simon&Garfunkel - em conjunto e a solo -, Dylon, Brel, mas também Mozart e Händel, Bach e Vivaldi, Allegri e Palestrina, Puccini e Tchaikovsky, sem esquecer Rodrigo Leão & convidados -, leio os poetas e escritores das pradarias americanas - Whitman, Thoreau, Emmerson - e lavo os olhos com os quadros de Hopper ou os trabalhos de Rauschemberg, sem esquecer os grandes espaços da paisagem americana, que permitem a concretização de todos os sonhos, sonhos estes que perpetuamente se reciclam e renovam contra as marés da adversidade. O meu convidado é um filho desse Novo Mundo que se reinventa e recria e não cede à má fortuna. Quantos seriam capazes de, aos setenta e muitos (setenta e oito no seu caso), percorrer milhares de quilómetros para cantar três ou quatro concertos por semana, durante semanas a fio? E isto pelo quinto ano consecutivo! É verdade que a necessidade de pagar o buraco financeiro cavado pela contabilista que lhe fugiu com o dinheiro dos impostos e os acordos entretanto celebrados com os Serviços do IRS funcionarão como um poderoso incentivo mas a força da genética e a confiança e optimismo proverbiais do Novo Mundo são absolutamente determinantes.
 
Despedimo-nos em silêncio. Da janela, vi-o entrar no carro que o levaria para o merecido descanso de três semanas antes de iniciar a tournée americana, no dia 31 de Outubro, em Austin, Texas.
Quando me preparava para arrumar os despojos da ceia, descobri os seus discos e o seu livro de poemas esquecidos em cima dum armário. Enquanto os re-alinhava nos locais a que pertencem reparei que estavam, todos, autografados, pedido que não ousara formular.

Já devem ter adivinhado, claro, o meu convidade era Leonard Cohen.  
 




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Com esta história e receita respondo ao desafio deste mês do Convidei para Jantar, lançado pela Ana e de que a Vera é anfitriã.
 




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Bolo de maçã

Cobertura

Ingredientes
 
4 maçãs golden ou reinetas com casca, bem lavadas e descaroçadas
Pitada de sal
Opcional: raspa de limão ou laranja, sultanas, nozes picadas

Preparação
Lavar as maçãs com a escova de vegetais e mergulhá-las durante cerca de 10 minutos em água fria com vinagre de maçã (para neutralizar os químicos uma vez que se utilizam com a casca e não são biológicas), após o que se descaroçam e mergulham em água com sal, colocando-se de seguida num tacho que possa ir ao forno (ou numa forma que possa ser utilizada no lume). Polvilhar com pitada de sal e tapar o tacho. Levar ao lume, forte ao princípio (cerca de 2/3 minutos), reduzindo então o lume para as deixar cozer. Quando cozidas, rechear o buraco de cada maçã com raspa de limão ou laranja, sultanas e nozes picadas.
Nota1: se se utilizarem reinetas o processo é muito rápido e tem que se ter cuidado para elas não desfazerem; por outro lado, as reinetas não libertam tanto suco como as golden e na fase inicial do lume forte é preciso ter cuidado para as maçãs não queimarem. No caso desta receita utilizei reinetas e foram necessários apenas cerca de dez minutos para obter umas maçãs bem cozidas e super doces.
Nota 2: A receita base é esta, pode-se aumentar o  número de maçãs aumentando proporcionalmente a receita da massa e, naturalmente, o tamanho do tacho.

As maçãs ficaram com este aspecto

 

Massa

Ingredientes
 
4 ovos biológicos (4 gemas e 4 claras)
150gr de farinha biológica T65 (no caso foi T80)
50gr de miolo de amêndoa moído
250gr de geleia de arroz

3 colheres de sopa de pasta de amêndoa clara
3 colheres de chá de fermento biológico em pó
Preparação
Bater a geleia com a pasta de amêndoa até obter uma massa fofa e que forme bolhas (cerca de 30 minutos na batedeira), juntar as gemas, uma a uma, batendo 5 minutos entre cada adição. Bater as claras em castelo firme e envolve-las delicadamente na massa em conjunto com a farinha, o pó de miolo de amêndoa e o fermento, estes três últimos peneirados.
 
Verter a massa no tacho sobre as maçãs cozidas e levar ao forno pré aquecido até a massa estar cozida (cerca de 45 minutos – verificar com palito).
Quando se desenforma, as maçãs ficam em cima conferindo um toque decorativo interessante, para além de um sabor húmido e fluido que forma um contraste agradável com a massa, mais pesada.

 
 
A receita original era um normal bolo amanteigado com ovos, farinha, fermento, manteiga e muuuuito açúcar - o processo da cobertura de maçã consistia em fazer um ponto de açucar com as maçãs que levava um copo de açúcar e dois de água. A minha versão não perde em doce pois o processo de confecção inicial das maçãs torna-as muito doces (a ausência de água e a pitada de sal potenciam o doce natural das maçãs).
O chá foi uma oferta vinda da China. Admito que se possa encontrar em lojas gourmet e, talvez, na Loja do Museu do Oriente, na qual se vendem lindíssimas "flores de chá".

 
 
 

9 comentários:

  1. Que receita maravilhosa!! Disseram as maças depois de se sentirem aconchegadas pela massa, que toda vaidosa, cresceu e se tornou una com as maças.
    Pena os correios não fazerem entregas virtuais, de fatias especiais, feitas de maça, carinho e pó de imaginação.
    Um abraço com apetite.
    Natália Rodrigues

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    1. Natália,
      Os seus jogos de palavras continuam saborosos e cheios de imaginação e "verve"!
      Expresso aqui o meu reconhecimento e agradecimento pela dica que me deu para o recheio das maçãs assadas e que, também no bolo, resultou muito bem.
      Bjs e até ao próximo workshop do IMP!

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  2. Posso repetir? Gostei imenso

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  3. O convidado é um verdadeiro senhor da música! Uma voz de arrepiar e embalar ao mesmo tempo. O bolo está fantástico.
    Beijinhos

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  4. Uma das vozes que se reconhece logo à primeira, um grande senhor da música e um bolo mais saudável e que deve ter ficado muito bom :)

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  5. Uma belíssima participação com um texto muito envolvente! Gostei, assim como gosto do convidado, com a sua voz cheia e grave incapaz de causar indiferença.
    O bolo em versão macrobiótica parece-me muito bom:)
    Beijinhos

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  6. Leonard Cohen lembra-me um dos meus irmãos mais velhos (não tenho outros - são todos mais velhos) que me fez ouvir a primeira vez aquela voz grave e de grande intensidade.
    Um grande senhor, sem dúvida, e uma belíssima homenagem.

    [Ainda aprendi sobre o chá e sobre a tarte de maçã (são as de maçã e as de framboesa - que sempre me lembram a vovó Donalda, que as deixava a arrefecer no parapeito da janela da cozinha)].

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    1. Matilde, eu também só tenho irmãos mais velhos e foi em casa do mais velho deles todos que "conheci" Leonard Cohen, no Verão muito longínquo de 1979.

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