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quinta-feira, 14 de março de 2013

CONVIDEI PARA JANTAR...

MAIS UM POEMA...

Não consegui resistir a bisar a minha participação na edição em curso do Convidei para Jantar, de que é anfitriã a Cristina e promotora a Ana.



    Nocturno,
   Júlio dos Reis Pereira (1), 1929


Cântico negro

 
José Régio(2)

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se o que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?



Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.



Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...



Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.



Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!


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Pela pena de Régio somos confrontados com a recusa de soluções fáceis e óbvias, de caminhos já muito percorridos, convocados a sair das zonas de conforto – ainda que (et  pour cause…) o desconforto seja muito e grande, a reflectir na vida e nas constantes escolhas que há que fazer, as quais condicionarão o ulterior devir dessa mesma vida e, em última análise, definirão a forma como se viverá a idade maior, a de adultos responsáveis, capazes de decidir e assumir as responsabilidades inerentes e decorrentes das decisões tomadas em cada momento e circunstância.

O processo doloroso do nascimento prepara-nos para as dificuldades vindouras pois crescer e viver não é fácil, antes pelo contrário.  Bettiol, penalista italiano, escreveu que “o sofrimento é o grande estímulo que leva o homem a voltar-se sobre si mesmo para tomar as mais importantes decisões da vida”.

Saber dizer não a cantos de sereia e remar contra algumas marés faz parte de uma cidadania plena que sabe que um direito tem sempre como reverso um dever e que um é indissociável do outro.

Escolher é recusar o estatuto de menoridade acrítica e bovina onde muitos, comodamente, se refugiam e para onde, outros, cinicamente, querem remeter os demais.

Cada verso deste poema de Régio é uma chicotada na nossa consciência e na nossa auto-complacência e que faz nos tempos perigosos que vivemos mais sentido do que nunca (como o terá feito em cada um dos oitenta e oito perigosos anos que passaram desde que, em 1925, foi escrito…).

E, acima de tudo, apela àquilo que mais prezo – à liberdade individual, à crítica e à auto-crítica, indissociável da responsabilidade, também ela individual, numa permanente recusa de totalitarismos identitários e de diluição da culpa ontológica no anonimato colectivo (não, não somos todos culpados pelo estado em que “isto” está).

Não seremos necessariamente mais felizes mas isso do “direito à felicidade” é uma enorme falácia criada pela Constituição Americana (cheia de coisas boas, desde logo, ser pequena e concisa e, acima de tudo, já não ter os seus autores vivos…). É que não me lembro de alguma vez ter ouvido falar no “dever de ser feliz”…

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Imagino Régio, regressado de um Grande Passeio de Domingo(3), pelos arredores acidentados de Portalegre, cajado na mão, capote alentejano pelos ombros.

Imagino-o revigorado pelo ar fresco e puro da Serra de S. Mamede, apesar de esgotado pelos quilómetros palmilhados, com um rafeiro alentejano colado aos calcanhares, arfante da excitação do passeio que o levara por trilhos até então inexplorados pelos demais caminhantes domingueiros.

Imagino-o sentado na sala de estar da ascética pensão a que chamou lar enquanto professor do Liceu de Portalegre -  cujo único excesso conhecido, a par dos escritos, são os Cristos crucificados - sentado numa mesa de camilha, em cujas profundezas brilham umas brasas depostas numa braseira de cobre.

Sobre a mesa jazem, qual natureza morta, uma taça de mousse de abóbora, uma garrafa de Porto e um copo para o servir.



(1) – Júlio dos Reis Pereira, pintor modernista (de entre outras actividades), irmão de Régio.
(2) – José Régio, pseudónimo de José dos Reis Pereira.
(3) – A propósito da novela “Davam grandes passeios aos Domingos”, de Régio.


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MOUSSE DE ABÓBORA




Ingredientes
1kg de abóbora, de preferência hokaido (larga menos água)
1 litro de leite de soja
Geleia de arroz a gosto (300 a 400gr)
2 colheres de sopa de amido de milho
1 colher de sobremesa de agar-agar
1 pouco de vagem de baunilha
Casca de limão
1 pau de canela
1 colher de sopa de pasta de amêndoa clara
3 ou 4 colheres de sopa de amêndoa sem casca moída

Preparação
Cozer a abóbora com uma pitada de sal e o mínimo possível de água; triturá-la com a varinha mágica quando estiver cozida.
Numa panela levar ao lume o leite de soja com o puré de abóbora e todos os demais ingredientes, sendo que o amido e o agar-agar são previamente dissolvidos.
Mexer continuamente o preparado. Prová-lo para rectificar o doce, tendo em consideração que quando está quente parece sempre mais doce do que em frio, pelo que se, nessa altura, estiver pouco doce deve-se acrescentar mais geleia.
Quando começar a engrossar e a subir na panela, desligar o lume, retirar a vagem de baunilha, o pau de canela e a casca de limão.
Deixar arrefecer e triturar com a varinha mágica, mexendo bem.
Servir em taças, podendo polvilhar-se com canela e amêndoa picada.

Nota: se se quiser uma consistência de pudim, aumentar a quantidade de agar-agar, não triturar o preparado e colocá-lo, ainda quente, numa forma grande, bonita, ou em pequenas formas individuais. Desenformar depois de frio.

2 comentários:

  1. Já temia que não convidassem o José Régio :) Obrigada! Este cântigo negro faz parte das minhas memórias de serão em familia. Grande escolha. Bj

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  2. O cântico negro estava guardado para uma das minhas escolhas! Tendo eu optado por Fernando Pessoa, ainda bem que alguém escolheu Régio.
    Revejo-me neste poema, sempre a contrariar e a tentar remar contra a maré!

    Tudo para dizer: excelente participação e uma mousse que nem conhecia, mas que dava tudo para experimentar! Isso e um copinho :)


    Beijinhos

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