Não consegui resistir a bisar a minha participação na edição em curso do Convidei para Jantar, de que é anfitriã a Cristina e promotora a Ana.
Nocturno,
Júlio dos Reis Pereira (1), 1929
Cântico negro
José Régio(2)
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se o que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
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Pela pena de Régio somos confrontados com a recusa de soluções fáceis e óbvias, de caminhos já muito percorridos, convocados a sair das zonas de conforto – ainda que (et pour cause…) o desconforto seja muito e grande, a reflectir na vida e nas constantes escolhas que há que fazer, as quais condicionarão o ulterior devir dessa mesma vida e, em última análise, definirão a forma como se viverá a idade maior, a de adultos responsáveis, capazes de decidir e assumir as responsabilidades inerentes e decorrentes das decisões tomadas em cada momento e circunstância.
O processo doloroso do nascimento prepara-nos para as dificuldades vindouras pois crescer e viver não é fácil, antes pelo contrário. Bettiol, penalista italiano, escreveu que “o sofrimento é o grande estímulo que leva o homem a voltar-se sobre si mesmo para tomar as mais importantes decisões da vida”.
Saber dizer não a cantos de sereia e remar contra algumas marés faz parte de uma cidadania plena que sabe que um direito tem sempre como reverso um dever e que um é indissociável do outro.
Escolher é recusar o estatuto de menoridade acrítica e bovina onde muitos, comodamente, se refugiam e para onde, outros, cinicamente, querem remeter os demais.
Cada verso deste poema de Régio é uma chicotada na nossa consciência e na nossa auto-complacência e que faz nos tempos perigosos que vivemos mais sentido do que nunca (como o terá feito em cada um dos oitenta e oito perigosos anos que passaram desde que, em 1925, foi escrito…).
E, acima de tudo, apela àquilo que mais prezo – à liberdade individual, à crítica e à auto-crítica, indissociável da responsabilidade, também ela individual, numa permanente recusa de totalitarismos identitários e de diluição da culpa ontológica no anonimato colectivo (não, não somos todos culpados pelo estado em que “isto” está).
Não seremos necessariamente mais felizes mas isso do “direito à felicidade” é uma enorme falácia criada pela Constituição Americana (cheia de coisas boas, desde logo, ser pequena e concisa e, acima de tudo, já não ter os seus autores vivos…). É que não me lembro de alguma vez ter ouvido falar no “dever de ser feliz”…
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Imagino Régio, regressado de um Grande Passeio de Domingo(3), pelos arredores acidentados de Portalegre, cajado na mão, capote alentejano pelos ombros.
Imagino-o revigorado pelo ar fresco e puro da Serra de S. Mamede, apesar de esgotado pelos quilómetros palmilhados, com um rafeiro alentejano colado aos calcanhares, arfante da excitação do passeio que o levara por trilhos até então inexplorados pelos demais caminhantes domingueiros.
Imagino-o sentado na sala de estar da ascética pensão a que chamou lar enquanto professor do Liceu de Portalegre - cujo único excesso conhecido, a par dos escritos, são os Cristos crucificados - sentado numa mesa de camilha, em cujas profundezas brilham umas brasas depostas numa braseira de cobre.
Sobre a mesa jazem, qual natureza morta, uma taça de mousse de abóbora, uma garrafa de Porto e um copo para o servir.
(1) – Júlio dos Reis Pereira, pintor modernista (de entre outras actividades), irmão de Régio.
(2) – José Régio, pseudónimo de José dos Reis Pereira.
(3) – A propósito da novela “Davam grandes passeios aos Domingos”, de Régio.
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MOUSSE DE ABÓBORA
Ingredientes
1kg de abóbora, de preferência hokaido (larga menos água)
1 litro de leite de soja
Geleia de arroz a gosto (300 a 400gr)
2 colheres de sopa de amido de milho
1 colher de sobremesa de agar-agar
1 pouco de vagem de baunilha
Casca de limão
1 pau de canela
1 colher de sopa de pasta de amêndoa clara
3 ou 4 colheres de sopa de amêndoa sem casca moída
Preparação
Cozer a abóbora com uma pitada de sal e o mínimo possível de água; triturá-la com a varinha mágica quando estiver cozida.
Numa panela levar ao lume o leite de soja com o puré de abóbora e todos os demais ingredientes, sendo que o amido e o agar-agar são previamente dissolvidos.
Mexer continuamente o preparado. Prová-lo para rectificar o doce, tendo em consideração que quando está quente parece sempre mais doce do que em frio, pelo que se, nessa altura, estiver pouco doce deve-se acrescentar mais geleia.
Quando começar a engrossar e a subir na panela, desligar o lume, retirar a vagem de baunilha, o pau de canela e a casca de limão.
Deixar arrefecer e triturar com a varinha mágica, mexendo bem.
Servir em taças, podendo polvilhar-se com canela e amêndoa picada.
Nota: se se quiser uma consistência de pudim, aumentar a quantidade de agar-agar, não triturar o preparado e colocá-lo, ainda quente, numa forma grande, bonita, ou em pequenas formas individuais. Desenformar depois de frio.
Já temia que não convidassem o José Régio :) Obrigada! Este cântigo negro faz parte das minhas memórias de serão em familia. Grande escolha. Bj
ResponderEliminarO cântico negro estava guardado para uma das minhas escolhas! Tendo eu optado por Fernando Pessoa, ainda bem que alguém escolheu Régio.
ResponderEliminarRevejo-me neste poema, sempre a contrariar e a tentar remar contra a maré!
Tudo para dizer: excelente participação e uma mousse que nem conhecia, mas que dava tudo para experimentar! Isso e um copinho :)
Beijinhos